quarta-feira, 10 de junho de 2020

Você sabe o que é Racismo? – Relato de uma Professora de Literatura em Aula de Acesso Remoto

“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”. Você sabe o que é racismo? Isso mesmo, início a minha fala engasgada chamando você para a reflexão. O que se entende por racismo?

Provavelmente na sua cabeça irão passar frases clichês e que atualmente servem de hastags para as redes sociais, mas vai muito mais, além disso, garanto.

Certo, mas aí você se questiona: “O que isso tem a ver com um blog sobre educação?” — Vou te responder, mas antes quero contar uma história.

Sou professora de Literatura do ensino regular básico e dentro da minha disciplina falamos muito sobre muitas coisas... amores, aventuras, comédia... e sempre foram aulas incríveis, até chegarmos no realismo. Ah! O realismo.... a escola literária que presentou o mundo com Machado de Assis que era NEGRO! Sim, negro. Neto de ex- escravos. Mas ao citar essa informação na sala ouvi de um aluno a seguinte pergunta: “Professora, por que nunca dizem que ele era negro?” e eu respondo com convicção “Por ser negro e no Brasil. Ser negro para alguns é sinônimo de crime”.

Pronto, estava feita a balburdia!

Não para os meus alunos, aliás, um salve a essa geração que não é alienada e sabe ouvir um debate, se colocar nesse debate e entender a realidade do país.

O problema não são os alunos e sim seus pais. Talvez por ingenuidade nem me dei conta de que a aula é remota, virtual e em casa, e que muitos pais assistem as aulas como verdadeiros sensores de conteúdos (ALERTA DE IRONIA: não que esteja me referindo a outros tempos, já tive problema demais por uma aula), mas a verdade é que a preocupação não é se o filho vai entender o problema de matemática ou se sabe quantos continentes tem no planeta (que tem esse nome apesar de não ser plana).

A preocupação é com as “ideologias”. Sim! Os pais não querem “professores ideológicos” como se esses existissem, mas isso é outra discussão. Voltando ao fato, falei a frase citada acima e segui minha aula. Para minha surpresa sou chamada para uma “reunião” para tratar de um “assunto delicado”. Penso — “Deve ser as provas que ainda não terminei a correção ou então o plano bimestral que ainda não entreguei” — mas para minha surpresa ouço:

— “Professora, como à senhora fala de racismo, e principalmente, no momento que estamos vivendo?” — Paro, respiro e pergunto: — “Como?”. — Pronto, foi ladeira abaixo.

Chuva de pais ligaram para a escola para dizer que eu “A professora de Literatura” não estava dando aula de Literatura e que estava “induzindo os meninos num pensamento errado e que tava chamando todo policial de “assassino de negro” e mais um “monte de coisa”.

A única coisa que conseguia dizer era que tinha dito que Machado de Assis era negro e que não se admitia isso, pois ainda vivemos em um regime escravocrata onde ser negro é crime e que policial matava negro e isso era mostrado pelos dados do governo. — Cavei minha sepultura, o crime foi confirmado!

— “Professora, mas o que isso tem a ver com sua matéria?”

— Gente, o que isso tem a ver com o mundo? Somos professores, independente de disciplina os assuntos estão aí, esses alunos, os mesmos que me perguntam por que não dizem que Machado de Assis é negro, são os alunos que não tem pais em casa para dizer ou conversar sobre racismo. São os alunos que se não ouvirem que racismo mata, vão cometer racismo “velado” e uso entre aspas porque francamente não acredito que racismo seja velado. O racismo está aí escancarado para quem quiser ver, praticar e sentir. Quer dizer, sentir só se você for preto.

Ouvi que não era mais para tratar desse assunto em sala, os pais disseram que “até que eu ensino bem”, mas não posso “manchar” meu nome com essas coisas pequenas. “São crianças, não tem maturidade para esses assuntos”. — Eu disse que era uma turma de terceiro ano médio? Pois é!

Terminamos a reunião e “até ouvi elogios” de que sou muito pontual, sei me expressar e que tenho muito conhecimento. Desligamos da reunião e olhei para o espelho do meu quarto e vi uma pele negra, olhos marejados e coração destruído.

Agora retomo a pergunta do início do texto, você sabe o que é racismo?  

 

Professora de Literatura, autora do relato não pode se identificar
Em sua homenagem colocamos este sorriso no rosto de quem sabe que faz a diferença na sala de aula!

Um comentário:

  1. Esses são os mesmos pais que compõem uma sociedade, que atualmente, "parece estar comovida "com a onde de protestos em favor do combate ao racismo. No mínimo,hipócritas.

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